sexta-feira, abril 28, 2006

 
"Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mc 15, 34)

CRUZ ATRAENTE?
Frei Bento Domingues, O.P.

Os trabalhos metódicos da exegese histórico-crítica, sobre cada um desses quatro textos, procuram detectar estratos do Jesus histórico, da tradição caldeada pelas primeiras comunidades cristas e o efeito da redacção final de cada autor
1.Estamos perto das férias da Páscoa. Numa sociedade democrática e pluralista, não é de estranhar que muitos sublinhem mais o encanto das férias do que as celebrações litúrgicas, por mais que se repita que são as consagradas mediações de transformação espiritual. Mas os católicos praticantes, em vez de lamentarem o rumo de alguns segmentos da juventude, devem estimular a imaginação criadora de cada uma das comunidades cristãs, de forma a tornar a liturgia uma sedução mística. A Páscoa é, por natureza, anticonservadora. Encostar-se à letra e à preguiça dos rituais congelados ou sem alma, não basta para concretizar alternativas à estratégia dos "filhos das trevas"...
Não se pode esquecer que os próprios discípulos de Jesus de Nazaré, depois do desastre pascal de há dois mil anos, tiveram de analisar os motivos pelos quais, eles próprios, abandonaram o Mestre. Como resultado desse longo reexame temos, além de outros textos fundamentais, quatro narrativas imprescindíveis.
Marcos foi o primeiro a deixar-nos um Evangelho, escrito provavelmente ainda antes dos anos 70, e guia do actual ano litúrgico. Mateus e Lucas conheceram essa obra sintética e essencial, mas beberam também noutras fontes, especialmente na chamada "fonte Q" (do alemão Quelle), que integraram em preocupações e horizontes distintos. Os três são designados por Evangelhos sinópticos, porque, apesar das suas diferenças e até divergências, num só olhar podemos ver o conjunto da acção, da mensagem e da doutrina revolucionárias de Cristo. O quarto Evangelho, com o nome de João, é de outro tipo. Gosta dos factos, da geografia e de uma boa polémica, mas enquadra tudo em sublimes interpretações simbólicas. Situado na confluência de grandes correntes filosófico-religiosas do seu tempo, o autor deve ter vivido numa metrópole onde se cruzavam o pensamento grego e o misticismo oriental e onde também o próprio judaísmo se tornava aberto a outras influências.
Os trabalhos metódicos da exegese histórico-crítica, sobre cada um desses quatro textos, procuram detectar estratos do Jesus histórico, da tradição caldeada pelas primeiras comunidades cristas e o efeito da redacção final de cada autor. São, todavia, peças literárias que crescem com as alterações que provocam no olhar crente e no coração daqueles que as saboreiam, não segundo o capricho individual, mas segundo os "jogos de linguagem" usados e seguindo adequados métodos de leitura e interpretação, remédio santo contra o fundamentalismo.
2. Saltando para fora do Novo Testamento, podemos ir ter com os documentos do Mar Morto (Qumrân), com os Evangelhos gnósticos da célebre biblioteca de Nag Hamadi, esperando a prometida publicação do Evangelho de Judas, escrito num dialecto copta, para ampliar o conhecimento das comunidades e do mundo no qual se desenvolveu o cristianismo dos primeiros séculos.
Desde há muito que se fazem aproximações entre as "incarnações" do hinduísmo e Jesus Cristo. Nestes últimos anos, foram publicadas várias obras que imaginam as viagens deste pela Índia, Tibete, Pérsia, Egipto e Grécia...Há quem pretenda que estes percursos ajudariam a explicar os longos anos de vida desconhecida de Jesus e as afinidades que mostrou com todo o caudal de civilizações, espiritualidades, gnoses, sabedorias que se revelaram na sua curta e inapagável intervenção. A sua digressão pela Índia é explorada por diversos autores e, sobretudo, pelos delirantes ideólogos da "new age".
Não escondo a simpatia pelo estudo de algumas analogias da mensagem de Cristo com todos esses mundos espirituais. O diálogo inter-religioso, a teologia cristã da experiência religiosa e das religiões não podem dispensar essa recolha universal que já foi interpretada como sementes do Verbo de Deus incarnado em Jesus Cristo.No entanto, Jesus é um judeu de Nazaré que viveu numa terra ocupada pelo Império Romano, atravessada por várias correntes religiosas que entre si concorriam e mutuamente se desprezavam. Segundo os documentos que temos, ele não morreu de velho nem de acidente cardiovascular. Como dizem os Actos dos Apóstolos (4, 27-28), foi morto por uma coligação internacional, criada para o efeito, sendo, por isso, absurdo responsabilizar o povo judeu pela morte daquele que considero a sua maior glória.
3. Foi longo o percurso que fiz, em algumas linhas, provocado por um texto duplamente escandaloso do V Domingo da Quaresma, posto na boca de Jesus, seis dias antes de ser executado: "Quando eu for elevado da terra, atrairei tudo a mim." O narrador do IV Evangelho observa: "Falava deste modo, para indicar de que morte ia morrer."A pena de morte por crucifixação aplicada, na Antiguidade, a escravos e rebeldes contra o poder, estava classificada como "mors turpissima crucis" e, na Bíblia, como uma maldição. É o paradigma da desgraça. O próprio Jesus a exprimiu ao gritar: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" (Mc 15, 34). Nada havia de mais repulsivo. Mas então, como é que Jesus se atreveu a dizer que seria, a partir desse lugar maldito, que atrairia tudo a si?De facto, foi na cruz que se operou a mais profunda transformação do coração humano. Jesus perdoou, incluindo no seu coração, os próprios inimigos, aqueles que o expulsaram do mundo. Jesus deu vida, futuro, a quem lhe dava a morte. A cruz tornou-se, em Jesus Cristo, a derrota da infinda reprodução da violência.
O grande filósofo judeu Emmanuel Lévinas (1906-1995) escrevia ao Papa Pio IX, nas vésperas da guerra: "É certo que o nosso caminho nos leva a outra parte. Passamos ao lado da Cruz, não andamos na sua direcção. Mas este horror sagrado, que os irmãos Tharaud um dia observaram nas crianças do gueto polaco, nós não o experimentamos quando a "sombra da Cruz" por um instante nos cobre. E num mundo cada vez mais hostil, cheio de suásticas, é para a Cruz de braços direitos e puros que levantamos muitas vezes os olhos."
A cruz não pode ser atraente. É a mais cruel das condenações. A cruz de Cristo é, no entanto, o símbolo e a realidade do que há de invencível no amor incondicional mesmo crucificado.

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